Foi-nos anunciada a tua chegada e desencadearam-se todos os inícios, especialmente, a alegria e a esperança que se renova e fortaleçe em cada nascimento. A primeira neta, a Madalena, o segundo neto, o Vasco e a terceira neta, tu, a Matilde, que chegarias a teu tempo. O avô Rui começou a pintar um quadro com o teu nome, que iria ser só uma tela, a do centro inferior, começou por aí.
Mas as pinceladas também são como as cerejas, atrás de uma vem a outra e o avô Rui não conseguia parar de te contar - através da pintura simbólica, a sua expresssão natural de falar – as belezas e os perigos óbvios e escondidos que vamos encontrando na vida. Penso que em qualquer altura da vida vais encontrar resposta ou conforto se olhares com atenção e, sobretudo disponibilidade, para este painel, que demorou meses a pintar. Acreditando que, nos mistérios encontramos mais verdades, é preciso ter cuidado com o que espreitamos e com as conclusões que tiramos de alguns sinais. Porque também existe maldade que não merece ser falada.
Falemos do que é belo.
E tu és bela Matildinha, és a nossa menina pequena. Bela é também a nossa menina grande, a Madalena, como belo é o nosso menino, o Vasco. São belos porque são bonitos, alegres e generosos. E ainda belos porque apanham os sopros dos grandes amores que despertam, especialmente dos pais, dos avós, da família e dos amigos.
O amor é uma corrente muito forte, só que não se vê, sente-se. Mas sente-se com tanta segurança e tanta força que nos dá amparo, mesmo quando pensamos que estamos sós.
É esse o grande elo da vida, o amor. O que damos e o que recebemos. E a gratidão que sentimos por nos sabermos envolvidos.
da natureza humana e das suas misérias. Uma leitura das nossas vidas tão desencantada e triste que impressiona.
A vida dos ricos e a vida dos pobres. Em comum, as mesmas angústias e a falta de alegria. Tudo cru, com as cores que se veem nos talhos. Ninguém é feliz.
No mundo dos ricos, que tudo podem comprar, incluindo homens e mulheres que os servem submissos ou com a astúcia de lhes sacar o máximo possível, falta-lhes ter paz. Não têm. Tentam ajustar contas com o passado mas nunca as acertam porque não dominam a ganância que sentem nem as memórias que lhes criaram essa dureza implacável.
Nos pobres, a mesma miséria. As mulheres novas, ambiciosas, a desperdiçarem a exuberância e a energia dos vinte anos com velhos com dinheiro, a troco de uns fios, sapatos, brincos, vestidos, jantares e carros que lhes podem ser retirados em qualquer altura, porque eles fazem questão de lhes mostrar quem é que manda. Tudo se passa com a bênção dos pais e restante família, aproveitando também eles algumas benesses.
E assim correm quase seiscentas páginas em que, basicamente, andam alguns com umas cenouras a acenar a muitos que poderão apanhá-las. Se, se e se muitos ses se cumprirem. Há um personagem diferente, o sem abrigo, de quem todos falam mas que só é avistado, ninguém o agarra ou interpela e no final há quem diga que é um anjo. É a fantasia-personagem, a liberdade, ninguém sabe quem é, aparece aqui e ali o tempo suficiente para ir semeando curiosidades e devaneios.
O escritor António Lobo Antunes, para além de ser um vulto da nossa literatura, conhece a nossa raça, sabe do que fala. Porque raio é que entre tantas palavras não lhe deu para falar dos flashes felizes que todos temos da infância, ou das memórias doces enquanto crescemos? Ou dos mundos paralelos que criamos com a imaginação, enquanto adultos? E do amor que nos faz sentir e ver mais alto, mais perto das nuvens, tantas vezes a troco de um sorriso ou de uns dedos que se entrelaçam nos nossos? De vez em quando, que a lucidez não aguenta muito tempo a máscara, por isso digo, de vez em quando, para não nos matar a esperança de uma vida melhor? Ele, que através de um personagem diz que este livro conta uma história de amor. Para mim o que sobressai é o jogo de interesses, a falta de ética e o desamparo. Falta de alegria e de dignidade. Apenas a sobrevivência.
Mas, talvez, com esta narrativa niilista ele tenha pensado que o melhor mesmo é pôr tudo em cacos, com o mundo neste caos tão óbvio já não é possível atamancar, há que recomeçar do zero. Talvez seja isso.