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e a solidão mergulhada e repartida em sonhos e encontros que duram há mil anos, pelo menos, porque mil anos são pouco ou nada para a estrela do mar.
Neste livro cruzam-se os relatos de bordo de dois missionários que seguem viagem para converter os Africanos e a vida de locais que, cerca de quatro séculos mais tarde, encontram esses escritos numa arca. A viagem é a inigualável linguagem de Mia Couto, humana e poética. Nivela-nos tanto nos sonhos como nas assombrações, porque somos sempre crédulos e cruéis, conforme o ângulo. Conforme o que vamos regando e acarinhando.
Desde os primeiros livros que sou fascinada pela sua escrita e por esse mundo, made by Mia Couto, em que a autenticidade e a comunhão entre pessoas e natureza são a estrutura, como um mapa que desenha toda a superfície e assinala as montanhas, rios e vales, assim faz o escritor tendo por base a doçura, a curiosidade e a aceitação da vida e da morte. Neste contexto a espiritualidade não é uma vivência íntima, é comunitária, ninguém se espanta de as molduras com os retratos dos mortos andarem a ser passeadas porque eles precisam de companhia e de arejar. Quem assiste pode comungar ou não destes passeios, o sagrado e o banal podem ter distâncias enormes ou estar ao pé da porta, como na vida.
Sem dramas, ou melhor, sem ser dramático, porque embora exista miséria, analfabetização e falta de cuidados médicos, como em tantos outros cantos da Terra, ele leva-nos a sentir a dignidade de se saber viver com os recursos que existem. E a dignidade merece reverência, está quase sempre associada à rebeldia que não cede à facilidade. Pode parecer tudo muito óbvio, mas não é.
As súmulas históricas de qualquer época contam as guerras, os tempos de paz e o ambiente social em que ocorrem. É, por isso, muito importante semear e enaltecer os afectos, as concordâncias e a beleza nas nossas vidas, porque, um dia destes, o nosso tempo também vai ser resumido. E a melhor maneira de viver este presente é nunca arrumarmos o nosso imaginário de crianças e manter, tanto quanto possível, a curiosidade e a inocência.
Não sou fã de filmes antigos, mas de vez em quando teimo em rever alguns para verificar. Aconteceu com este filme de 1963, e acontece que voltei a gostar.
As termas como espaço comunitário de encontros e conversas é um ambiente fantástico por ser limitada a estadia, não é uma aldeia ou um bairro de uma grande cidade. Respira-se, por isso, um ambiente de leveza e elegância, só possível, por não haver tempo para criar compromissos, gerando uma dinâmica de estar simpática e descontraída.
Do enredo não vale a pena falar, não há quem não saiba, mas a seriedade com que fala dos eternos (e nunca resolvidos) problemas existenciais e da criatividade ou das suas falhas continua a merecer respeito.
com Juliette Binoche, soberba como sempre.
É belíssimo e perturbante. Filmado com um cuidado poético que nos envolve, facilmente a casa e os jardins encobrem ou resolvem mistérios. Mas essa sensibilidade apura-se na presença das duas mulheres, nos seus gestos e silêncios, que falam tanto ou mais do que as palavras.
Existe um drama em fundo. A perda inesperada do filho. A dor maior, para qualquer mãe.
Se não existisse este drama seria fácil, pelo menos para mim, ficar indignada com a mentira e a manipulação exercida pela mãe à jovem namorada do filho. É um jogo perverso agir como se nada se tivesse passado para tentar saber mais do filho e manter a ilusão que ainda vive, mais um dia ou dois ou três, e assim, iludida e iludindo, confunde e confronta a inocência e a vitalidade da rapariga. Jogo que o único homem do filme, o caseiro de há muito, não consegue continuar a presenciar.
Entre o desespero que tenta controlar e a normalidade que quer manter com a jovem para negar o desaparecimento do filho, vai destapando contradições, mistura-se tudo, dor, raiva, educação, egoísmo, elegância e compaixão. E, por isso, somos incapazes de a condenar, pelo contrário, compreendemos que é um terreno negro.
Perturbador, inesperado e belo este filme. Atento a todos os pormenores, faz coincidir este tempo de espera pelo rapaz com a celebração da Páscoa e os rituais de morte e ressurreição. Numa aldeia em Itália, tão perto de nós.