António Lobo Antunes, Sôbolos rios que vão
a caminho da foz levando o que lá vai caindo, paus, folhas, pequenos objectos leves e pesados, o que não pode seguir vai ficando encalhado nas margens. Leva também as cinzas do Senhor Antunes, ou do Antoninho, doente terminal de cancro, que no hospital vai revisitando toda a sua vida, enquanto dura. Especialmente a infância, os pais, os avós, o tio, os amigos, os vizinhos, a vila toda, mesmo os mortos voltam, falam e dão palpites acerca do que se passa hoje. A vida e a morte baralhadas e quase inacreditáveis, uma e outra.
Li este livro com o conforto de quem está de mãos dadas com alguém muito forte, sem medo. É incrível olhar para nós desta maneira, tão dentro do corpo e da alma, como se fosse desviando o coração, os rins, os músculos, os dentes e continuasse para ver o que há mais. É uma banalização desassombrada e ao mesmo tempo generosa e cheia de doçura com as lembranças que lhe vêm à memória. O colo da mãe cheio de rendas e de cheiros, os ditos da avó, a presença do avô, a chegada dos comboios à estação, mergulha com tanta emoção nesse tempo que desvaloriza o que está a passar. Às vezes até ri, para estranheza do enfermeiro e do médico. A presença das visitas, com os mimos habituais de quem quer dar algum aconchego e carinho, é-lhe completamente indiferente do tipo tá bém, isso dá-me tanto jeito como uma poucochita de chica larica. É assim.
Obrigada. Com tanta crueza fica mais forte e mágica esta vontade de viver. E de fantasiar.