António Lobo Antunes, Da Natureza Dos Deuses
da natureza humana e das suas misérias. Uma leitura das nossas vidas tão desencantada e triste que impressiona.
A vida dos ricos e a vida dos pobres. Em comum, as mesmas angústias e a falta de alegria. Tudo cru, com as cores que se veem nos talhos. Ninguém é feliz.
No mundo dos ricos, que tudo podem comprar, incluindo homens e mulheres que os servem submissos ou com a astúcia de lhes sacar o máximo possível, falta-lhes ter paz. Não têm. Tentam ajustar contas com o passado mas nunca as acertam porque não dominam a ganância que sentem nem as memórias que lhes criaram essa dureza implacável.
Nos pobres, a mesma miséria. As mulheres novas, ambiciosas, a desperdiçarem a exuberância e a energia dos vinte anos com velhos com dinheiro, a troco de uns fios, sapatos, brincos, vestidos, jantares e carros que lhes podem ser retirados em qualquer altura, porque eles fazem questão de lhes mostrar quem é que manda. Tudo se passa com a bênção dos pais e restante família, aproveitando também eles algumas benesses.
E assim correm quase seiscentas páginas em que, basicamente, andam alguns com umas cenouras a acenar a muitos que poderão apanhá-las. Se, se e se muitos ses se cumprirem. Há um personagem diferente, o sem abrigo, de quem todos falam mas que só é avistado, ninguém o agarra ou interpela e no final há quem diga que é um anjo. É a fantasia-personagem, a liberdade, ninguém sabe quem é, aparece aqui e ali o tempo suficiente para ir semeando curiosidades e devaneios.
O escritor António Lobo Antunes, para além de ser um vulto da nossa literatura, conhece a nossa raça, sabe do que fala. Porque raio é que entre tantas palavras não lhe deu para falar dos flashes felizes que todos temos da infância, ou das memórias doces enquanto crescemos? Ou dos mundos paralelos que criamos com a imaginação, enquanto adultos? E do amor que nos faz sentir e ver mais alto, mais perto das nuvens, tantas vezes a troco de um sorriso ou de uns dedos que se entrelaçam nos nossos? De vez em quando, que a lucidez não aguenta muito tempo a máscara, por isso digo, de vez em quando, para não nos matar a esperança de uma vida melhor? Ele, que através de um personagem diz que este livro conta uma história de amor. Para mim o que sobressai é o jogo de interesses, a falta de ética e o desamparo. Falta de alegria e de dignidade. Apenas a sobrevivência.
Mas, talvez, com esta narrativa niilista ele tenha pensado que o melhor mesmo é pôr tudo em cacos, com o mundo neste caos tão óbvio já não é possível atamancar, há que recomeçar do zero. Talvez seja isso.