de tanto sonhar acordada
pintura a óleo, Rui Couto
não dou pelos caminhos. Só quando esbarro em alguém ou nalgum objecto ou, então, quando chego aos destinos.
Eu sei que o caminho tantas vezes é mais interessante do que a chegada, mas as distracções sugam-me a atenção, nunca consigo saber o nome das ruas ou enquadramentos paisagísticos, chego lá e pronto.
Outro dia iam duas mulheres, mais ou menos da minha idade, a conversar e dizia uma que a tal viagem que três ou quatro amigas tinham pensado fazer antes das festas de Natal – para espairecer e aguentar mais um bom tempinho de andanças na família – tinha sido desmarcada por causa desta onda de insegurança. Fez-me lembrar aqueles tempos em que se começou a falar de SIDA. De vez em quando lá vem o recado que o melhor mesmo é portarmo-nos muito bem, ou seja, de casa para o supermercado, voltar e pouco mais. Mas o que me agarrou foi a cara da ouvinte, contente, satisfeita com o desfecho, não deixando, contudo, que a alegria lhe chegasse à boca, porque teria de sorrir e não era, de maneira nenhuma, correcto fazê-lo. E, assim, fez o que devia. Veio o resto da viagem a justificar a necessidade que elas tinham, coitadas, tão devotas de todos os filhos, filhas, noras, genros, netos e dos maridos, claro, se havia alguém que merecia distrações eram aquelas três ou quatro, sem dúvida. Ainda fez algumas considerações, mansinhas, de alguns problemas que tiveram e que, nalguns casos, poderiam ter sido evitados, se elas tivessem acudido doutra maneira. Mas cada um tem o feitio que tem, é assim. Que pena a viagem ter sido desmarcada, ía fazer-lhes tão bem.
Nisto os homens levam anos de avanço. Se, por caso, ficam despeitados com o arrojo de algum não perdem tempo a dizer mal dele, começam logo a arquitectar o plano de fazer igual ou melhor e, não sei mas posso inventar, que se aconselham e se ajudam nestes preparos. Já melhorou bastante o mundo feminino mas ainda há muita hipocrisia e competição e em crises de pobreza e desemprego dão-se passos atrás.
Despediram-se as duas amigas e eu fiquei de olho na boazinha. Li-lhe sorrisos de corpo e alma e acho que se estava a deleitar com a tal viagem e com as fantasias que as outras dizem que sonham. Mas ela não. Ela não sonha com coisas dessas.