Mia Couto, o outro pé da sereia
Neste livro cruzam-se os relatos de bordo de dois missionários que seguem viagem para converter os Africanos e a vida de locais que, cerca de quatro séculos mais tarde, encontram esses escritos numa arca. A viagem é a inigualável linguagem de Mia Couto, humana e poética. Nivela-nos tanto nos sonhos como nas assombrações, porque somos sempre crédulos e cruéis, conforme o ângulo. Conforme o que vamos regando e acarinhando.
Desde os primeiros livros que sou fascinada pela sua escrita e por esse mundo, made by Mia Couto, em que a autenticidade e a comunhão entre pessoas e natureza são a estrutura, como um mapa que desenha toda a superfície e assinala as montanhas, rios e vales, assim faz o escritor tendo por base a doçura, a curiosidade e a aceitação da vida e da morte. Neste contexto a espiritualidade não é uma vivência íntima, é comunitária, ninguém se espanta de as molduras com os retratos dos mortos andarem a ser passeadas porque eles precisam de companhia e de arejar. Quem assiste pode comungar ou não destes passeios, o sagrado e o banal podem ter distâncias enormes ou estar ao pé da porta, como na vida.
Sem dramas, ou melhor, sem ser dramático, porque embora exista miséria, analfabetização e falta de cuidados médicos, como em tantos outros cantos da Terra, ele leva-nos a sentir a dignidade de se saber viver com os recursos que existem. E a dignidade merece reverência, está quase sempre associada à rebeldia que não cede à facilidade. Pode parecer tudo muito óbvio, mas não é.
As súmulas históricas de qualquer época contam as guerras, os tempos de paz e o ambiente social em que ocorrem. É, por isso, muito importante semear e enaltecer os afectos, as concordâncias e a beleza nas nossas vidas, porque, um dia destes, o nosso tempo também vai ser resumido. E a melhor maneira de viver este presente é nunca arrumarmos o nosso imaginário de crianças e manter, tanto quanto possível, a curiosidade e a inocência.